Conhecimentos básicos e avançados sobre autismo - Módulo 1

4. HETEROGENEIDADE

A condição do Espetro do Autismo é muito heterogénea, não só ao nível das manifestações clínicas, com diferentes momentos para o aparecimento dos primeiros sintomas e distribuição desigual em termos de género, mas também no que diz respeito aos fatores de risco e etiopatogénese. 

O autismo pode ser acompanhado por qualquer nível de funcionamento intelectual e de linguagem verbal. Como tal, foram identificadas na nova Classificação Internacional de Doenças, ICD-11, da Organização Mundial de Saúde, cinco subcategorias para o autismo (WHO, 2019). Três subcategorias correspondem a pessoas com perfis harmonizados de funcionamento intelectual e linguístico: indivíduos não-verbais com défices intelectuais; indivíduos com défices intelectuais e da linguagem funcional, bem como indivíduos com níveis médios de inteligência com capacidades verbais e discursivas bem desenvolvidas. Para além destes, existem também dois perfis discrepantes: o primeiro são pessoas de inteligência preservada com défices ao nível da linguagem funcional, enquanto o segundo perfil se caracteriza por um reduzido funcionamento intelectual acompanhado de aspetos estruturais da linguagem bem desenvolvidos, sendo este raramente descrito na literatura. Alguns autores (Silleresi et al., 2020) identificaram, na parte verbal do espetro, outro perfil composto por pessoas com capacidades intelectuais acima da média e que desenvolveram aspetos estruturais da linguagem. De notar que apenas as cinco subcategorias principais são abordadas aqui e, dentro de cada uma delas, existem numerosas variações no grau de desenvolvimento das capacidades fonológicas, morfossintácticas, pragmáticas e intelectuais. Como já sabemos, a essas variações acrescentam-se as diferenças ao nível da manifestação dos comportamentos estereotipados, da sensibilidade sensorial, das comorbilidades e outros tantos fatores, uma vez que estamos a falar de uma perturbação num espetro.

O aparecimento dos primeiros sinais comportamentais de autismo pode ocorrer de três formas. Algumas crianças demonstraram logo no primeiro ano de vida alguns comportamentos típicos do autismo. Outras, após um período de desenvolvimento típico ou aparentemente típico, parecem perder as capacidades de comunicação social desenvolvidas e surgem as estereotipias - estes casos são característicos do autismo regressivo. Estudos recentes mostram que o autismo regressivo ocorre com muito mais frequência do que se pensava anteriormente. O terceiro padrão, menos frequentemente descrito, refere-se a crianças que estagnaram após um período de desenvolvimento típico, não progredindo da forma esperada (Ozonoff, & Iosif, 2019).

No espetro do autismo, estão diagnosticados muitos mais homens do que mulheres. Esta proporção é, geralmente, de 4-5: 1. Acredita-se que o género feminino pode consistir num fator de proteção, pelo que as raparigas necessitam de uma carga genética mais elevada para que o autismo se manifeste e/ou a ação de outros fatores de risco. Estudos recentes, realizados nos países nórdicos, mostram que a proporção de homens e mulheres com autismo é na realidade 2-3: 1. Acredita-se que há mais mulheres com autismo do que se pensava anteriormente, mas que são tardiamente diagnosticadas, tanto devido a manifestações clínicas específicas como devido a uma maior tendência para camuflar os sintomas. Em comparação com rapazes com autismo em idade escolar, as raparigas da mesma idade integram melhor o comportamento verbal e não-verbal, têm maiores e melhores níveis de imaginação, conseguem iniciar e manter conversas recíprocas e fazer amizades com mais facilidade, no entanto, revelam maiores dificuldades em mantê-las. Nas pessoas com autismo minimamente verbais, não foram observadas diferenças significativas entre género na comunicação e interações sociais, nas estereotipias, e no funcionamento cognitivo e adaptativo. No entanto, as mulheres com autismo funcional manifestam, em regra, menos estereotipias do que os homens, sendo possível que difiram de acordo com a forma das atividades estereotipadas. Em comparação com os homens, as mulheres revelam mais dificuldades no processamento sensorial, maior ocorrência de compulsões e as autoagressões são mais comuns (Lai et al., 2017; Lai, & Szatmari, 2020). Algumas pessoas com autismo funcional conseguem camuflar os seus sintomas, de modo a conseguirem adaptar-se à sociedade. As mulheres tendem a conseguir camuflar melhor os seus sintomas e fazem-no de várias formas: procurando e mantendo o contacto visual, utilizando frases aprendidas que foram treinando, imitando o comportamento de outras pessoas (modelação comportamental), incluindo a expressão facial, a adequação dos temas e tópicos de conversação, e a distância espacial apropriada a manter durante uma conversa. Como esta camuflagem de sintomas requer um enorme esforço cognitivo, estas pessoas estão expostas a elevados níveis de stress, ansiedade e depressão (Lai et al., 2017).

No espetro do autismo, existe também uma enorme heterogeneidade em relação à percentagem de fatores genéticos no desenvolvimento do autismo, quadro clínico, resultados e prognóstico. A etiologia do autismo é muito complexa e é influenciada por vários fatores. Na maioria dos casos, não é possível associar o autismo a uma condição clínica de etiologia conhecida. Utilizamos o termo autismo sindrómico quando o autismo está associado a uma condição de etiologia conhecida, tal como o cromossoma X frágil, esclerose tuberosa, ou síndrome de Down. O risco de um irmão ou irmã de uma criança com autismo idiopático ter autismo varia de 3% a 10%, e se for observado um fenótipo autista mais amplo, então o risco aumenta para mais de 18% (Ozonoff et al., 2011). Os testes genéticos não indicam um padrão único de herança genética no autismo. Enquanto alguns casos de autismo são acompanhados por condições monogénicas, foram também registadas várias formas de herança poligénica. A investigação também aponta para o papel das mutações de novo, bem como dos fatores epigenéticos. Os mecanismos epigenéticos são modificações bioquímicas do ADN que não alteram as sequências de ADN, mas apenas afetam a sua expressão genética. Fatores etiológicos diferentes podem causar o aparecimento das mesmas manifestações fenotípicas ou de manifestações fenotípicas semelhantes (Hervás, 2016).